Dissecação de Ben Oliveira, um conto gay sobre relacionamento (ou não)

Dissecação de Ben Oliveira é um conto gay sobre as nuances de um relacionamento a partir da visão de um homem machucado que navega na sua introspecção que faz parte da Semana do Escritor.

Dissecação de Ben Oliveira

Observar algo sendo aberto, ainda que morto, a sua frente, pode provocar uma série de reações, mas nunca a indiferença. De tanto se acostumar a rasgar as criaturas, os mais pragmáticos não as consideram como coisas que carregavam vida dentro de si, somente coisas.

Sua língua era lâmina e quanto mais me fazia sangrar, mais prazer sentia com a minha dor. Os cortes mais invisíveis são os que mais machucam. Espasmos no rosto ou sorriso forçado? Olhos vermelhos e a vontade de deixar minha alma escorregar… Ou será a fumaça do cigarro e a cerveja quente? Seu coração estava mais gelado do que minha bebida.

A mulher me observa. É pena que eu vejo em seus olhos? Ela traga a fumaça, como se juntasse coragem para dizer o que a está incomodando. Ela vê a maneira que ele me tratou a noite inteira, a incompletude. O amor não deveria ser de mão única ou não é amor. Ele me oferece o amor do não-amor. Meu ponto fraco.

Ele se levanta. Ela aproveita a deixa e suas palavras respingam em mim, uma tela com sangue de um amor mal resolvido, um amor que pode nunca se concretizar, condenado a nunca se cristalizar. Efêmero, vazio. O espelho quebrado que ele carrega dentro de si. O mesmo que eu venho tentado colar durante anos e cada vez em que encosto, meus dedos sangram. Fragmentos.

“Você está apaixonado?”. Que tipo de jogo masoquista era aquele em que ela estava me colocando? Tomo um gole da cerveja, desejando que o álcool desligasse aquela parte de mim que sempre fala demais, pensa demais e sofre demais. São muitos demais em uma só frase, uma só pessoa. “Eu não saberia dizer se é paixão. Eu o conheço há anos.”.

“Não foi isso o que eu te perguntei. Você sabe muito bem do que eu estou falando (ela faz uma pausa e sinto seu olhar atravessando o meu peito) […] Você está apaixonado por ele?”. A pergunta me parecia retórica. Bastava olhar a maneira que minhas mãos tocavam a dele. A verborragia sobre o passado, um filme de nós dois sem começo e fim, sempre preso no meio que devora a própria cauda. O ciclo maldito feito de medos. “A verdade é que eu sempre fui apaixonado por ele. Como eu poderia chamar isso de paixão, se dura tantos anos, tantas idas e vindas? Eu sei que ele sente algo por mim, mas morre de medo de demonstrar”. “Eu não estou falando dele, mas de você”. Deus, por que ele tinha que me deixar sozinho ali?

“Você gosta dele e conhece ele. O que você vai fazer se ele aprontar alguma? Você não tem medo de se machucar?”. Perguntas para respostas que eu tento evitar. Respostas para perguntas que eu não quis pensar. Faz parte do ser humano ser egoísta e machucar aqueles que mais nos amam. Faz parte dele errar, desaparecer e só voltar atrás quando é tarde demais. Pergunto-me até quando? Até quando vamos atuar neste roteiro dramático escrito por nós mesmos? “Nós já conversamos sobre isso”.

“Então, o que você vai fazer?”. “Eu não sei. Eu suponho que não preciso estar ao lado dele para gostar. Posso estar longe e continuar amando mesmo assim, sem nunca trocar uma palavra ou revelar o que eu realmente sinto”. “Isto me parece tão triste. Você está bem com isso?”. “O que mais posso fazer? Às vezes, você gosta de alguém e sabe o que fazer para ajudá-lo, mas essas respostas ele só descobrirá sozinho. Cada um tem sua própria jornada”. “Você está jogando com ele, tentando mostrar que pode ser independente emocionalmente caso tudo dê errado…”. “Eu me recuso a participar deste jogo. Eu poderia interpretar aquele que ele gostaria que eu fosse. Eu sei do que ele gosta. Eu só quero que ele me veja como realmente sou e se as coisas não derem certo, prometi a mim mesmo que esta seria a última vez, nem que para isso eu tenha que me mudar do país”.

“Sabe, você é uma boa pessoa e eu torço, de verdade, para que esse relacionamento dê certo. Você é o cara.”. A pena estava ali novamente. Os delírios de um eterno romântico que se tornava de gelo com qualquer outra pessoa, menos com ele. Enquanto ele se entregava para todo tipo de pessoas erradas, menos para mim. Estávamos tão perto e tão longe, em universos paralelos, reflexos de nossas vidas passadas. Tão doloroso quanto vê-lo com qualquer outra pessoa, sabendo que eles nunca dariam certo, era saber que não importava o quanto eu o queria bem, esta decisão não estava em minhas mãos. “Você está esperando. E eu espero que você não o deixe te machucar”.

Era como se o primeiro ato tivesse terminado, mas ninguém tivesse batido palmas ou percebido a dramaticidade do momento. Eu era como uma criatura bizarra sendo exposta diante da plateia que me observava perplexa. Uma aberração que acreditava em algo. Não era aquela a definição de loucura: ser incapaz de mostrar o seu ponto de vista para os outros? Talvez eu estivesse perdendo a cabeça. Tudo o que eu queria era ir para casa, encostar a cabeça no travesseiro e deixar tudo vazar de mim, até que não restasse um pingo de desolação em mim, até que aquela conversa se apagasse. Como todo herói eu teria que enfrentar aquilo até o final e minha pesquisadora ainda não havia concluído suas perguntas.

Aquele que viaja pelo éter, mas é puxado por uma força maior: a curiosidade. Acendi um cigarro. Eu queria que a fumaça nublasse o meu coração. Olhei para a lua cheia que se derretia como um quadro surrealista. Era aquele terremoto que acontecia sempre que nossos mundos se chocavam. Cometas passeavam. Faça um desejo.

“E você? Você está bem?”. Naquele instante me tornei espectador. Aquela peça era minha e não tinha para onde correr. As pernas tremiam. As mãos se seguravam, para que nenhum pedaço meu caísse no chão. Aquela era minha sentença e só minha. O juiz decretara o meu sofrimento para uma vida toda longe dele: você pode desejá-lo bem, amá-lo, mas jamais interromper sua jornada de aprendizado. “Eu estou bem. Eu não estava me sentindo bonito há uns meses. Agora eu fico até me olhando no espelho”.

Denegação. “Não foi isso que eu perguntei. Eu não sei se você vai ficar bravo, mas vou perguntar de qualquer jeito. Como está o coração? É o que eu quero saber. Você está apaixonado?”. Corra. Tampe os ouvidos e se arrependa, fique e morra. Não há escolha fácil. “Você sabe como é… Eu não diria apaixonado. Eu me machuquei muito. Fiquei triste durante meses…”. “Isto esclarece muita coisa. Você tem medo? Você realmente acha que estar com alguém que te faz bem é errado?”. “Não errado, mas forçado. É claro que eu tenho medo de me machucar”.

Depois de atravessar o inferno, eu deveria pagar com o meu coração para que o barqueiro me levasse de volta. O fim do segundo ato traz um desconfortável interlúdio. A música parece querer arrancar de mim tudo o que tenho segurado com minha força. Por favor, que isso acabe logo. Tudo o que eu queria era poder ficar um pouco sozinho com ele, agora eu só quero ir embora. Ela se despede. Acendo um cigarro. Ele volta. Meus olhos estão vermelhos. O lago da minha alma está agitado.

A música já não está ali. Eu olho para ele. Ele olha para mim. O silêncio. A resposta está na não-resposta. Preciso tomar cuidado ou logo minha loucura se tornará sanidade e toda a magia se perderá.

“Até quando nós vamos ficar assim?”. “Assim como?”. “Sem saber para onde isto vai nos levar…”. “Você sabe…”. “É… Que você tem medo. Às vezes, só não sei o quanto disso é o seu medo ou se não gosta de mim. Não entendo porque o medo é só comigo.”. “Isto é conversa para quando estivermos sóbrios”. Virei a cabeça para o outro lado. As lágrimas escorreram. A paz de um, o tormento do outro. “E a nossa foto? Você realmente colocou no mural?”. “Olha lá…”.

Acendi a luz. Senti um sorriso se rasgando no meu rosto. “Você me acha idiota? Digo, por gostar de você?”. “Claro que não.”. “Acha que eu devo desistir de você? Te deixar em paz? Que estou perdendo o meu tempo?”. “Eu estou quase dormindo…”. Depois de um minuto de silêncio, sussurro: “Às vezes, as pessoas acham que eu sou só mais uma na sua vida. É como se ninguém fosse acreditar que a gente vai dar certo. Como se isso tudo fosse minha imaginação”.

Ele dorme. Algo dentro de mim dorme. E os sonhos não vêm.

Referências
Blog do Ben Oliveira;

Deixe uma resposta

Rolar para cima