Indícios cor-de-rosa, conto sobre a relação de mãe e filho

Indícios cor-de- rosa, um conto gay sobre relacionamento entre mãe e filho narra a história de uma criança e a inusitada descoberta da sua mãe.

O conto de Tales Gubes faz parte do projeto Semana do Escritor.

Indícios cor-de- rosa

Regina e Cássio entraram de mãos dadas na imensa loja de roupas.

Regina estava de cara fechada, os pensamentos ainda emaranhados com a lembrança do ônibus lotado que enfrentaram para chegar até o shopping e com a insolência de alguns adolescentes que distribuíam seus sons e gritos aos demais passageiros.

Cássio, por sua vez, encontrava-se absorvido por cores e movimentos que se produziam num sábado próximo ao natal. Em sua imaginação, caminhava com a mãe entre montanhas e mares de gente, vitrines mágicas com portais secretos e sons, muitos sons.

– Regina!

O grito de saudação chamou a atenção de Regina e de inúmeras outras pessoas com nomes diversos.

Uma senhora gorda com um casaquinho azul veio aproximando-se aos passos largos, um sorriso desenhado no rosto e os braços fortes prontos para envolver a velha conhecida.

Regina reconheceu imediatamente a voz e a corpulência da mulher que vinha em sua direção.

Dona Francisca fora por algum tempo cobradora em uma das linhas do ônibus em que Regina era motorista. Desde que a conhecera, Regina esforçava-se para gostar da mulher, mas sentia que algum dia teria motivos para detestá-la.

Ela nunca se enganava no que dizia respeito ao caráter das pessoas: da mesma forma que reconhecia em seu filho a determinação de quem sabe o que quer na vida e não aceita discussões em contrário, olhava para Francisca e pressentia ali algum conflito ainda por se desvelar.

Engolida pelo abraço da ex-colega – não se viam há três anos, durante nenhum dos quais Regina sentiu alguma saudade –, a mão que apertava a do filho soltou-se.

Cássio, desinteressado pelo que estava acontecendo com sua mãe e atento a algo mais que havia captado seu olhar faminto, encarou a mão solta como indicação de liberdade precoce.

– Regina, minha querida, me conta como anda a tua vida, nunca mais nos vimos, menina!

Atropelada pelas perguntas, Regina buscava fôlego para responder.

Na realidade, esperava que Francisca necessitasse respirar em algum momento para lhe dizer que era muito bom vê-la, mas tinha pressa para comprar um presente de natal de última hora e já logo precisaria ir embora.

Sugeriria, então, se houvesse tempo antes da ex-colega lhe atropelar novamente, que marcassem um dia para se encontrarem, um dia que nunca chegaria.

Não houve tempo para falar nada disso.

– Então, Regina, eu saí da empresa. – Bateu os braços na cintura e olhou franzindo os olhos como uma policial zangada. – Briguei com todo mundo, ficaram sem me pagar um mês e não aceitei.

De forma dolorosa, Regina lembrou-se por que não gostara de trabalhar com Dona Francisca três anos antes. Ela nunca parava de falar.

Quando não era com ela, ao menos Regina concentrava-se na estrada ou nas pessoas fazendo sinal para que o ônibus parasse e o incômodo se resumia à voz grasnada da mulher.

Não que o projeto de paz durasse muito tempo, pois logo alguém parava de dar atenção e Francisca chamava de novo por Regina até roubar-lhe a atenção.

Dona Francisca era o tipo de pessoa que não precisava de resposta, bastava-lhe o contato e a certeza de estar sendo ouvida.

Mulher de opiniões fortes, falava alto e gesticulava com ainda mais veemência. Era famosa nas linhas de ônibus em que atuava, pois com o dedo em riste dava ao mundo soluções e comentava as notícias do jornal como se fosse paga para isso.

Sempre que ouvia uma notícia sobre AIDS dizia a quem pudesse ouvir – quisesse ou não – como a doença era uma punição divina contra a baixaria que vinha tomando o comportamento humano nos últimos tempos.

Segurava firme em sua pesada cruz de madeira pendurada no pescoço e vociferava entender os desígnios de seu deus.

Regina, por sua vez, não era mulher de discutir. Evitar o conflito era parte de sua conduta típica, embora não aceitasse desaforos.

Frequentemente ganhava a fama de antipática, pois o tanto que não lhe interessava brigar também não lhe encantava conversar amenidades. Uma vez concentrada no trabalho, poucas coisas tiravam seu foco. Francisca era uma delas.

Com a verborragia de Francisca em sua frente, Regina levou mais tempo do que o usual para perceber que sua mão não estava mais presa à de seu filho.

Uma faísca gelada acendeu-se em seu coração e espalhou-se por seu corpo como pólvora, descendo a coluna e roubando-lhe o resto de trato diplomático.

Deu as costas a Francisca, que imediatamente percebeu que havia algo errado – Regina jamais a interrompera daquela forma e deveria ter um ótimo motivo para fazê-lo enquanto ouvia os segredos sexuais do dono da empresa de viação.

– Onde está o Cássio?

A pergunta perdeu-se no limbo para onde se dirige o desespero de toda mãe quando um filhote está em perigo.

Todos seus sentidos estavam direcionados a encontrar um pequeno rapaz de sete anos usando uma camisetinha azul e os tênis marrons que de manhã tanto reclamara que odiava, mas ela o forçou a usá-los mesmo assim.

Enquanto lembrava-se do exato instante em que suas mãos se soltaram – gravou mentalmente uma nota para gostar ainda menos de Dona Francisca –, Regina dava passos lentos para ajudá-la a olhar e ouvir qualquer coisa lhe pudesse ajudar a localizar a criança.

A loja em que estavam era grande, mas Cássio não costumava ir longe. Alguma coisa devia ter-lhe roubado a atenção… Finalmente o viu e disparou em sua direção.

O menininho estava sentado em um banco na seção de sapatos da loja. Havia já tirado os tênis que odiava e estava calçando um par de sapatilhas cor-de-rosa de ballet.

Quando percebeu a mãe, abriu-lhe um sorriso de contentamento e piou:

– Olha, mãe!

Regina parou ao lado do menino e contemplou a situação. Filho desaparecido encontrado. Tênis odiados trocados por sapatilhas cor-de-rosa. Cor de menina.

Anos de formação católica se acumularam em seu pescoço, engasgando-a e ao mesmo tempo exigindo uma resposta.

Cássio podia sentir o ar ao redor da mãe carregando-se de energia negativa: alguma coisa realmente séria estava para acontecer e ele não gostava nem um pouco daquilo.

Baixou a cabeça com vergonha sem nem saber o motivo.

– Que pouca vergonha, um menino desse tamanho colocando tamanco de menininha! Isso lá é coisa que homem faça, tem é que apanhar para aprender o que um menino de verdade tem que vestir. Daqui a pouco vai querer ser bailarina, também!

Dona Francisca gritando. Pessoas ao redor na loja começando a se aproximar para ver o acontecido.

Regina avermelhando de vergonha. Cássio lacrimejando e tremendo de medo da imensa senhora que lhe dizia sobre o mundo. O mundo em câmera lenta.

Cássio percebeu uma grande sombra adiantando-se e dedos envolvendo seu bracinho.

Sem aviso fora levantado do banco onde estava e puxado violentamente para cima. – Tu devia era ter vergonha. – Ouvia os gritos alucinados, quem falava não era uma senhora, mas uma força da natureza.

Um tapa.

Sem gentileza alguma, Cássio foi devolvido ao lugar.

Ouvira o nítido som de um tapa, mas nada em seu corpo doía além do braço que fora quase esmagado pela senhora gigante e o ladinho da perna que amortecera sua queda no banco onde estivera sentado. Ainda sem entender direito, viu Dona Francisca encarar Regina com espanto e rancor.

Dedo em riste quase no nariz da ex-colega, Regina pontuou:

– Nunca mais encosta no meu filho.

Um silêncio frágil instalou-se. Todos ao redor esperavam para ver o que aconteceria. Um segurança da loja vinha já se aproximando para apartar o desentendimento enquanto pelo rádio informava aos colegas que talvez precisasse de ajuda.

Alguém comentava aos cochichos sobre a mulher e o menino dos sapatinhos cor-de-rosa.

– Filho, tira esses sapatos.

Como se percebesse uma fagulha de triunfo nascer no olhar de Francisca, Regina completou:

– E dá aqui para a mamãe. A gente vai levar.

Dona Francisca pareceu engasgar com o silêncio. Não estava acostumada a ouvir, muito menos a ouvir calada.

Sua mão doía ainda do tapa, mas não mais que o ego, ferido pela correção pública.

Antes que pudesse falar qualquer coisa, porém, teve a canela ferida por um chutinho fraco e infantil, mas preciso num osso desacostumado com impactos.

Enquanto urrava de dor, percebeu as pessoas em volta rindo com o desenrolar da situação. Afastou-se mancando e resmungando qualquer coisa sobre a falta de educação moral nos dias de hoje.

Cássio tirou as sapatilhas e entregou-as à mãe, que olhou para ele severa. Ela sabia que precisava, naquele momento, fazê-lo entender o que havia recém se passado. Era o seu dever como mãe ensiná-lo a distinguir o certo do errado.

– Filho, isso não se faz, tá bom?

– Mas mãe, ela bateu em mim!

– Não, filho, o que não se faz é soltar a mão da mamãe e sumir desse jeito. – Sorrindo para Cássio, Regina completou, fazendo uma careta: – Bater nos outros também não pode, mas tu estava defendendo a mamãe. Aí pode.

Saíram da loja sem encontrar o presente de natal que procuravam e também sem levar as sapatilhas cor-de-rosa.

Cássio não chiou, sabia estar no limite da desobediência depois de tudo o que ocorrera e logo esqueceria de tudo, da senhora grandona e também das sapatilhas.

Regina sim levou algo daquela loja para casa: a memória das sapatilhas, do sermão da ex-colega e de tudo que acreditava sobre meninos e meninas.

Quando deu boa noite a Cássio, deixando-o adormecido na cama, suspirou fundo enquanto reescrevia mentalmente suas expectativas para o futuro do menino.

Entre as que já possuía, apenas uma continuou: a de que ele fosse feliz.

Referências
Tales Gubes;

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