Seis Balas Num Buraco Só: A Crise do Masculino de João Silvério Trevisan

Seis Balas Num Buraco Só: A Crise do Masculino de João Silvério Trevisan desmascara o utópico conceito de masculino da nossa sociedade.

Ficha Técnica
Autor: TREVISAN, João Silvério
Título: Seis Balas Num Buraco So
Edição: 1°
Local de Publicação: Rio de Janeiro
Editora: Record
Gênero: Didático / Ensaio
Ano: 1998
Número de Páginas: 236

O autor expõe claramente os medos e a vulnerabilidade do macho humano, acanhado e confuso em meio às inalcançáveis metas que a sociedade patriarcal estipula para ele.

Em dezessete capítulos, o autor despe a construção da masculinidade e expõe descaradamente a fragilidade na qual ela se baseia que, além de não revelar ao homem seu verdadeiro eu, ainda o aprisiona em um ideal não só impossível e impraticável, quanto insustentável e quebradiço.

A partir de recentes exemplificações de algumas vazões extremadas, devido à formação e manutenção desse impossível masculino idealizado, o autor tece a rede de ideias que demonstra todo o aparato psicológico que a sociedade patriarcal tenta lançar mão para posicionar o macho humano como um ser totalmente dominador, ativo e insensível.

Inclusive, é desse posicionamento que vemos nascer o terrível medo do macho humano em perder sua virilidade masculina e, assim, tornar-se castrado, portanto passivo, ou ainda, feminino e sem identidade. Tal medo é gradativamente relacionado ao comportamento do homem frente à mulher, a outros machos, a si mesmo e também em relação à homoafetividade masculina e a homossexualidade.

Toda a pressão e os dogmas para o comportamento do macho humano têm então seus desdobramentos compreendidos e assim é revelado, pouco-a-pouco, a real motivação de alguns comportamentos do homem atualmente como, por exemplo, o conquistador Don Juan, as relações violentas entre torcidas futebolísticas e até a homofobia.

Ao homem de leito conservador, como o meu, é impossível não se sentir nu em meio aos pensamentos do autor e neles também encontrar verdadeiras revelações de nossas atitudes cotidianas, sejam elas íntimas ou públicas.

Portanto, a obra é recomendável para qualquer um, macho ou fêmea, heterossexual ou homossexual, que queira entender um pouco melhor a construção do ideal masculino da nossa sociedade patriarcal e assim até conseguir se livrar desse pesado paradigma.

Não perca a chance de incluir essa obra em sua estante de livros gays e aprender mais sobre você mesmo.

Citações selecionadas

Hoje, o masculino sofre investidas e transformações de cunho universal. Seus mitos revelam-se fragilíssimos, vitimados pela própria “ilusão do masculino” que a sociedade patriarcal esmeradamente veio criando para a construção do “verdadeiro homem”” (TREVISAN, 1998, p. 18).

[Retrato do] masculino em crise, nos dias de hoje: acuado e sem defesa, ele perde o controle e exacerba sua agressividade, destruindo tudo à sua volta e se autodestruindo” (TREVISAN, 1998, p. 24).

Por outro lado, os machos humanos não gostam de se examinar; ou melhor, não acham que têm algo tão errado assim que mereça seu olhar inquiridor” (TREVISAN, 1998, p. 26).

Para quem não está acostumado nem nunca foi obrigado a isso, olhar para si mesmo é, no mínimo, um desconforto” (TREVISAN, 1998, p. 26).

Se os homens homossexuais e as mulheres estão discutindo o masculino, isso se deve a uma omissão dos próprios homens heterossexuais, que nunca se julgaram “discutíveis” – mesmo porque dificilmente conseguem falar sobre si próprios” (TREVISAN, 1998, p. 26).

Para quem não está acostumado nem nunca foi obrigado a isso, olhar para si mesmo é, no mínimo, um desconforto” (TREVISAN, 1998, p. 26).

[…] pode-se pensar também em tal violência [contra a mulher] como uma espécie de punição pelo fato das mulheres serem diferentes, quer dizer, não possuírem pênis e, portanto, estarem naturalmente “castradas” – o que, do ponto de vista masculino, falocrático e hegemônico merece total desprezo” (TREVISAN, 1998, p. 30).

[…] os estudiosos ainda discutem até que ponto masculinidade e feminilidade são dados biológicos ou construções ideológicas [ou seja] o determinismo biológico versus o culturalismo ou construtivismo” (TREVISAN, 1998, p. 39).

A verdade é que não se pode falar do biológico sem mencionar a interferência do inconsciente humano, com suas projeções culturais. Assim como existem muitos homens cordatos, as mulheres não são necessariamente e sempre delicadas, por natureza” (TREVISAN, 1998, p. 39).

A força masculina e a delicadeza feminina são, portanto, atributos que foram construídos de um modo ou de outro, a partir de algum momento, na história da cultura patriarcal. Ou seja, o masculino e o feminino não podem ser tomados como realidades objetivas e imutáveis” (TREVISAN, 1998, p. 39).

A virilidade, segundo Bardinter, não é um dom. Ao contrário, deve ser “fabricada” de acordo com um referencial: o “verdadeiro homem” – uma figura ilusória e utópica que o macho precisa alcançar através de deveres e provações, para mostrar que também é um. Em outras palavras, o varão é “uma espécie de artefato e, como tal, corre sempre o rico de apresentar defeito”. Isso torna a virilidade uma carga pesada, desde muito cedo” (TREVISAN, 1998, p. 40).

[…] diferentemente das mulheres, para “ser homem” é preciso tornar-se homem. Em outras palavras, “o caminho para a masculinidade precisa ser conquistado”, ao mesmo tempo que permanece sempre possível o risco de perde-la” (TREVISAN, 1998, p. 41).

Para Freud, possuir um pênis significa para o varão um “repúdio à feminilidade”; perder o pênis [castração], em contrapartida, equivaleria a ser passivo, quer dizer feminino [perdendo-se assim a masculinidade, o que gera pavor e insegurança]” (TREVISAN, 1998, p. 48).

[Isso piora porque as culturas falocêntricas] criaram um artifício: transformaram o pênis (órgão concreto) automaticamente em falo (valor de símbolo), e com isso criaram uma dramática confusão […] Assim, para o macho, qualquer perda “implica a perda do falo” – seja com dinheiro, propriedades, no amor, com a mulher, com os filhos, na sua posição profissional, em influência social [ou ainda, a cada perda, o homem pode se sentir castrado e menos masculino]” (TREVISAN, 1998, p. 50).

Mircea Eliade, grande estudioso das mitologias e religiões, manifestava a convicção de que, “exceto para o mundo moderno, a sexualidade foi sempre e em toda parte uma hierofania, e o ato sexual um ato integral (logo, também um meio de conhecimento).” Considerando hierofania como “manifestação do sagrado”, a sexualidade seria então uma maneira de experimentar o cosmo, uma entrada no mistério da criação, e teria como função maior revelar aos seres humanos aquilo que está além do ego. Em outras palavras, para Eliade e muitos estudiosos junguianos, o sentido de sexualidade seria revelar o divino presente no humano” (TREVISAN, 1998, p. 53).

Nosso quotidiano moderno está cheio de exemplos que mostram a necessidade de autoafirmação masculina é a outra face da moeda da insegurança – já que não se precisaria afirmar aquilo de que se tem certeza” (TREVISAN, 1998, p. 68).

Na verdade, o macho humano não sabe falar de si mesmo: a intimidade não faz parte do “mundo masculino”, tal como culturalmente constituído” (TREVISAN, 1998, p. 69).

De fato, o universo masculino rejeita tudo o que sugerir dano ou perda do pênis, metaforizados em dano ou perda da própria identidade. Daí resulta a já mencionada “angustia da castração”, fenômeno recorrente nos mais banais momentos do quotidiano de um homem, com suas várias manifestações metafóricas ou não (e adiante abordaremos o horror à homossexualidade como uma dessas metáforas de emasculação)” (TREVISAN, 1998, p. 73).

Pode-se apontar, com esse mesmo anseio priápico, o culto explícito à musculatura avantajada ou body building, um dos pilares do moderno narcisismo masculino. Não se trata de inocentes halterofilistas ansiosos por autoafirmação. Esse tipo de inflação chegou ao patamar de valor-de-troca erótica, na cena homossexual, onde a moeda de maior fetiche é a virilidade exibida na musculatura” (TREVISAN, 1998, p. 79).

[Ainda como inflação fálica temos] o carro importado [ou a moto possante] como prova de “status” não apenas de classe, mas também de virilidade” (TREVISAN, 1998, p. 80).

Além de trombetear suas façanhas, como se precisasse reafirmar publicamente uma virilidade insegura, Dom Juan evita qualquer compromisso […] sempre em busca da identidade masculina periclitante” (TREVISAN, 1998, p. 86).

De fato, é no ato de ausentar-se e buscar que se processa [o atual conceito de] masculinidade. Isto fica claro quando se considera que, no imaginário e na organização social das mais variadas culturas, a casa é o espaço da mulher. Enquanto espaço feminino, casa nenhuma está adequada ao masculino, cuja sina é errar, eternamente em busca de um pouso impossível” (TREVISAN, 1998, p. 128).

[…] onde tropeça todo terror masculino: o medo de ser castrado – o que no imaginário popular em geral equivale a ser viado” (TREVISAN, 1998, p. 134).

Seu anseio por um Pasolini normalizado [não homossexual] é o mesmo desejo do atormentado Glauber normalizar-se a si próprio, a partir daquilo que condenava no outro, tornado seu espelho” (TREVISAN, 1998, p. 139).

Projeta-se no desprezado aquilo tudo que desprezamos em nós mesmos, inclusive nossas inclinações inconfessadas” (TREVISAN, 1998, p. 144).

Ferenczi se espanta com o fato de que os homens de hoje perderam a capacidade de ternura e amabilidade recíprocas, instaurando em seu lugar “a rudeza, o antagonismo e a rivalidade”. Como sintomas de defesa (“formações reativas”) contra tais manifestações de ternura dos homens entre si, ele aponta justamente a proliferação das relações masculinas violentas, inclusive entre grupos, tornadas deformações do sentimento afetivo inicial – vejam-se, para tanto, as torcidas futebolísticas rivais” (TREVISAN, 1998, p. 145).

[A homossexualidade pode estar em um] perverso processo de chancela mediante o qual a homossexualidade recebe o carimbo de “consumível”, reforçando o rótulo de “homossexual” ao mesmo tempo que lhe outorga a chancela de “normalidade” circunscrita a “lugares apropriados”, quer dizer, sempre à margem da sociedade. Já foi assim com o triângulo rosa que os nazistas pregavam nas roupas dos prisioneiros homossexuais, “permitindo-lhes” circular dentro dos campos de concentração. Com a permissividade das sociedades “avançadas”, criou-se uma forma mais sofisticada, porque menos visível, de marginalizar – e o triângulo ficou rosa-choque” (TREVISAN, 1998, p. 154).

À medida que se descaracteriza como “doença de bicha” e se socializa, a Aids vem melhorando de status, o que tende a tirar-lhe o estigma e banaliza-la, evidenciando o inverso do que a sociedade moderna tem feito com as relações homossexuais – ou seja, quanto mais homossexual, menos socializado” (TREVISAN, 1998, p. 155).

[…] a identidade masculina é hesitante justamente por ter se articulado, quase obsessivamente, sobre uma negação: “homem não é mulher”. Não ser passivo é provavelmente sua escora maior. Por isso a masculinidade se afirma, ao mesmo tempo que se defende, contra o feminino” (TREVISAN, 1998, p. 157).

Por extensão, nos ambientes em que predomina a presença do macho heterossexual, o xingo mais comum é “viado”, que de tão familiar chega a ser usado com cumplicidade (envolvendo às vezes mal camuflada ternura) no tratamento entre amigos do peito. Pode-se ver aí um sintoma de como a questão de “dar” tornou-se quase uma obsessão na cultura patriarcal” (TREVISAN, 1998, p. 163).

Os socos, pontapés e golpes de jiu-jitsu recebidos por ele poderiam significar, ao invés, gestos de amor recalcado, funcionando como exorcismo contra o pânico de seus agressores ao se sentirem eroticamente atraídos por André/Sandrinho – leia-se: de não conseguirem afastar o desejo de serem eles próprios emasculados, ou seja, de ter sua masculinidade negada – gerando um enorme conflito identitário” (TREVISAN, 1998, p. 164).

[Os homossexuais] Tornam-se bodes expiatórios do medo ancestral à emasculação do macho, que ronda secularmente a organização patriarcal” (TREVISAN, 1998, p. 185).

O rechaço infantil socialmente manifestado em adultos homofóbicos não se atualiza apenas na agressividade radical dos assassinos de bichas (prováveis homossexuais enrustidos), mas encontra-se internalizados nesses inúmeros homossexuais que, sofrendo de culpabilidade, consomem-se em sistemática autopunição […] O pesadelo de estar dividido entre o impulso do seu desejo e as prescrições sociais condenatórias resulta em grave conflito interior que tem levado muitos homossexuais ao alcoolismo, à loucura, ao suicídio, ao homicídio e à violência, em diferentes épocas” (TREVISAN, 1998, p. 187).

O certo é que, na sua construção identitária, será fundamental que o masculino deixe de se definir por referência negativa ao feminino – tornado, além do seu contrário, parte de sua sombra interior. Só superando esse cotejo traumático é que ele estará disponível para responder à pergunta feita ao seu espelho: quem sou eu?” (TREVISAN, 1998, p. 209)

Referências
TREVISAN, João Silvério. Seis Balas Num Buraco Só: A Crise do Masculino. Rio de Janeiro: Record, 1998.

Livro Seis Balas Num Buraco So na Amazon;

Deixe uma resposta

Rolar para cima